A Nossa História
A História da CERCITOP,CRL
Na Primeira Pessoa
Tinha apenas 16 anos quando a 15 de Março de 1988 comecei a trabalhar no escritório de um Colégio privado cujo âmbito era prestar apoio a crianças, jovens e adultos com deficiência mental profunda e multideficiência. Lembro-me de ficar muitíssimo entusiasmado pelo facto de trabalhar e de poder contribuir, embora de forma indireta, no apoio a pessoas muito dependentes cujo destino quis que nascessem assim ou que ficassem assim após alguns meses ou anos de vida. No fundo, sentia no meu trabalho uma enorme utilidade e significado, ao contrário de outras experiências profissionais curtas que tive desde os 15 anos.
Naquela altura havia uma gigantesca escassez de equipamentos de apoio social/saúde (ainda hoje há falta apesar de haver uma oferta muito maior), a legislação era menos rigorosa e as condições de apoio a esta população com deficiência não eram tão boas quanto são hoje. A título de exemplo os quartos de internamento eram com beliches. No entanto, e neste Colégio em particular, o apoio prestado era considerado bom e existiam adequados procedimentos de higiene, era no fundo um Colégio de referência apesar dos anos a fio com salários em atraso e dificuldades financeiras – resultado de uma forma de funcionar baseada numa legislação errada, retrógrada e que infelizmente ainda hoje persiste em parte, fruto de algo que se tornou banal na sociedade portuguesa que é precisamente não se legislar bem, não se cumprir a lei (sobretudo por parte do Estado) e da máquina pública não funcionar corretamente, demasiadamente parecido com aquilo que é típico num país do chamado terceiro mundo.
Passados uns anos da minha entrada no Colégio, mudámos de instalações duas vezes. Um ano de transição para Oeiras e depois em definitivo para Sintra. Infelizmente foi uma mudança sempre para pior, sem qualquer tipo de condições de funcionamento para a tipologia da população que o Colégio atendia. Em simultâneo a proprietária do Colégio, que sofria de diabetes, começou a perder as suas faculdades físicas; deixou de ver, de ouvir e perdeu-se assim a sua liderança. O funcionamento do Colégio decaiu imenso, a juntar às más instalações físicas, e deixou assim de prestar um bom serviço aos seus utentes. Por diversas vezes tentei sair do Colégio e procurar emprego noutras empresas, inclusive concorri (num processo que demoraria 2 anos) a Inspetor Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
Alguns pais e colegas (aqueles que verdadeiramente se preocupavam com o funcionamento do Colégio) tentaram sempre que eu não saísse pois diziam que apesar de tudo eu conseguia, através da minha influência e constante preocupação, manter padrões mínimos de funcionamento e temiam que com a minha saída piorassem. Acabei por ter algumas oportunidades de sair, uma delas para uma grande empresa farmacêutica portuguesa, mas o coração falou sempre mais alto e acabei sempre por ficar.
Tentei criar eu próprio um colégio privado para poder ser uma alternativa àqueles jovens e adultos (também algumas crianças) mas não consegui pois a legislação exigia habilitações ao nível do ensino, as quais eu não tinha.
Entretanto, fruto do mau funcionamento, o Governo de então criou uma comissão interministerial para analisar a situação do Colégio com vista ao seu encerramento. Tarefa muito difícil pois como referi anteriormente a oferta era muito pouca e não havia vagas onde colocar várias dezenas de utentes.
Foi então que me reuni com algumas colegas e pais de utentes (os que verdadeiramente se preocupavam com o funcionamento e bem estar dos utentes) e lancei o desafio de criarmos uma organização sem fins lucrativos que pudesse ser uma alternativa aos utentes do Colégio. Iniciei este processo quando tinha apenas 25 anos de idade.
Pedimos uma reunião à Fenacerci, que nos autorizou a usar o nome Cerci e nos disponibilizou o apoio do seu advogado para nos ajudar a constituir uma cooperativa. Era para se chamar CerciSintra mas como o nome era parecido com uma outra cooperativa já existente no concelho, o nome acabou por ficar CerciTOP (Todo o País) traduzindo logo também a minha intenção de que desde o início os nossos estatutos cobrissem todo o território (incluindo ilhas), ao contrário do que era e é usual nestas organizações, ou seja, os estatutos cobrirem somente a região onde se localizam.
A CERCITOP,CRL foi constituída com muito esforço e muito custo; desde logo alguns dos próprios fundadores não acreditavam que pudesse ter sucesso mas lá fizemos a constituição jurídica em Fevereiro de 1998. Importa referir que algumas das pessoas que fizeram parte deste processo inicial colocaram muito do seu pouco dinheiro (para fazer face às despesas de abrir uma empresa) pois viviam com diversos meses de salários em atraso e nunca é demais louvar esta coragem e determinação. Para angariar alguns fundos participámos em duas campanhas do pirilampo mágico (1998 e 1999) onde mais uma vez algumas pessoas se dedicaram e tiraram dias de férias para o efeito, e pedimos alguns donativos a empresas.
Costumo dizer que a CERCITOP abriu por telefone. No dia 29 de Julho de 1999 recebo um telefonema por parte de uma diretora de departamento da Segurança Social de Lisboa a pedir que a CERCITOP estivesse a funcionar no dia 1 de Setembro do mesmo ano com instalações para acolher 12 jovens em Lar Residencial (LR) e 13 jovens em Centro de Atividades Ocupacionais (CAO) sendo 12 deles comuns à Residência. Isto é, 33 dias para encontrar instalações, equipá-las e contratar colaboradores. Uma tarefa hercúlea tendo em conta que ainda não tínhamos instalações, que em regra as fábricas encerram no mês de Agosto, que a maioria das empresas está a laborar nos mínimos devido ao gozo de férias do pessoal e ainda proceder ao recrutamento e seleção dos colaboradores. Parecia tarefa impossível. Como costumo dizer, se acreditarmos muito em algo, unirmos esforços e formos determinados, conseguimos quase tudo. E o que é facto é que conseguimos mesmo. No dia 1 de Setembro estávamos a funcionar com os nossos colaboradores em casa emprestada (para onde os utentes do colégio foram transferidos temporariamente durante o mês de Agosto) – da CerciLisboa (a quem agradeço) e no dia 6 de Setembro nas nossas instalações em Sintra (que é a data em que comemoramos o aniversário da CERCITOP,CRL).
O Mês de Agosto foi de um trabalho gigantesco por parte de todos para conseguir pôr tudo de pé. Setembro foi igualmente um mês muito difícil. Trabalhei 16 a 18 horas por dia todos os dias do mês sem folgar. Fazia de motorista, tratava da documentação, das compras, de tudo um pouco. Montámos placas à beira da estrada, debaixo de chuva, com pais dos nossos utentes, entre outras coisas que poderia aqui contar mas não o faço para que o texto não se torne demasiado longo.
Duas notas ainda que julgo serem importantes registar. Uma é que no dia 29 de Julho de 1999 me demiti com justa causa por motivo de salários em atraso de forma a ter direito ao subsídio de desemprego. Isto permitiu-me durante 9 meses trabalhar voluntariamente para a Cercitop e poupar assim um salário à instituição pois todos os escudos contavam. Refiro isto pois apesar de algumas exceções, a maioria das pessoas que trabalha nesta área fá-lo por paixão e não pelos salários baixos que recebem. A outra nota é que sempre segui o coração e é realmente enorme a paixão de trabalhar nesta área pois na mesma semana que a CERCITOP abriu recebi uma carta do tal concurso a que concorri no SEF a informar-me que fora admitido. Desisti assim de um lugar seguro no Estado e assumi o risco e o compromisso de fazer crescer a CERCITOP. Ainda hoje estou convencido que a CERCITOP não teria aberto se o Governo tivesse encontrado alternativa para as dezenas de jovens que frequentavam o Colégio. Mas como não havia alternativa arriscaram e logo num teste de fogo, nós e a Cercipóvoa ficamos com os casos mais dependentes e mais problemáticos em termos comportamentais.
Desenvolvemos um excelente trabalho, reconhecido por todos ao longo dos anos e merecemos a confiança de todos, em particular da Segurança Social, a quem agradeço.
Sempre entendi, e verbalizo-o imensas vezes, não somos obrigados a crescer mas temos o dever moral de o fazer. E podemos crescer em diversas áreas e não apenas naquela que iniciámos o funcionamento. Entendo que uma organização sem fins lucrativos deve operar na área social/saúde/educação ou outras que surgirem sem qualquer receio pois deve olhar à volta, sobretudo na região onde está inserida, e procurar ir ao encontro das necessidades das pessoas. Infelizmente a CERCITOP teve enormes dificuldades financeiras no seu início e correu mesmo o risco de encerrar mas conseguimos ultrapassar as dificuldades com o apoio de diversas entidades, entre as quais a Câmara Municipal de Sintra, a Junta de Freguesia de Santa Maria e São Miguel, a própria Segurança Social, entre outras.
Desde então a Cercitop começou a crescer em diversas áreas, muito por força da nossa pro atividade mas também sobretudo da enorme necessidade de apoio social que existia no concelho de Sintra – o qual cresceu muito rapidamente em termos demográficos e as estruturas não estavam preparadas para tal, havia assim quase tudo por fazer.
Começamos com o apoio domiciliário a idosos (sendo ainda hoje a maior instituição do concelho nesta área), crescemos ainda mais em CAO e LR, iniciámos os apoios nas escolas, a Intervenção Precoce, abrimos uma clínica totalmente privada (para com os lucros das receitas cobrir os prejuízos resultantes das receitas do Estado). Mais tarde abrimos uma Unidade de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) nas mesmas instalações para onde transferimos dois dos nossos CAO e 2 dos nossos Lares num espaço pertencente à Ordem Hospitaleira São João de Deus – Casa de Saúde do Telhal a quem tanto agradecemos do coração e que, juntamente com uma parceria também de um arrendamento de cozinha e refeitório ao Sporting Clube de Lourel (que foi a primeira parceria de todas) nos permitiu dar um grande salto; o que demonstra que as parcerias são o melhor que pode haver em sociedade, pois em conjunto todos fazemos e conseguimos muito mais.
Foi depois com a abertura, em Maio de 2011, da segunda UCCI que nos tornámos a maior cooperativa de solidariedade social de Portugal, isto tudo conseguido em apenas 11 anos e meio de trabalho. Muitas pessoas me perguntam qual o segredo de tanto crescimento e sucesso. Já expliquei referindo as necessidades de Sintra, a nossa pro atividade, falta referir as pessoas. Só nos rodeando de boas pessoas do ponto de vista humano e profissional é que conseguimos excelentes resultados e elas são o segredo do sucesso pois sozinho ninguém faz grande coisa.
Desde então continuámos a crescer abrindo mais um LR, aderimos ao desafio da Segurança Social para o apoio nas Cantinas Sociais e estamos a desenvolver projetos para apostar nestas e noutras áreas de que a população portuguesa em geral e a sintrense em particular necessita.
Alterámos recentemente os estatutos para cooperativa multissectorial com o intuito de abarcar outras áreas de atividade, de forma a criar negócios privados que possam dar lucro e compensar o facto de o Estado pagar às organizações sem fins lucrativos abaixo do custo de funcionamento. Abrimos um operador turístico e agência de viagens (sobretudo para criar e desenvolver serviços de turismo para pessoas com deficiência), expandimos a clínica (cuja principal actividade é a reabilitação), temos alvará de transporte de passageiros e de aluguer de viaturas (principalmente a pensar no transporte de pessoas em cadeiras de rodas) e a última novidade consiste em gerirmos um SPA de um hotel de 5 estrelas em Sintra muito virado para o turismo de saúde. Ou seja, crescer em negócios privados mas todos eles ligados à nossa área e sempre com uma preocupação social.
E espero que a história da CERCITOP continue para sempre, focada no seu principal objetivo que é prestar cuidados de excelência a pessoas com qualquer tipo de dependência, tendo a capacidade de se transformar consoante as evoluções que as sociedades sofrem, sem nunca esquecer que as pessoas que cuidamos devem ser o nosso enfoque, bem como as suas famílias e também as pessoas que aqui trabalham, as quais devem ter boas condições, boas ferramentas de trabalho e um salário digno, devendo ser recompensadas o mais possível por este trabalho magnífico – mas muito cansativo e desgastante – mas também muito recompensador pelo facto de todos fazermos a diferença na vida das pessoas que apoiamos e das suas famílias.
José Bourdain